BLOGGER TEMPLATES AND IMVU Layouts »

23 de jul. de 2013

O Inseto

Calhou a um inseto recém emerso de sua última metamorfose que viesse ao mundo na cela de um monge que naquele momento expirava num último frêmito silencioso. No exato momento em que o monge arregalou os olhos diante da morte o inseto pousou sobre os lábios ressecados do ancião recebendo-lhe o derradeiro sopro de vida. Ato contínuo o inseto alçou voo conforme seus instintos, mas de imediato sentiu uma vertigem que o fez cair sobre um livro de orações aberto em cima de uma mesinha tosca sobre a qual repousavam também um terço muito velho e um castiçal de estanho.
Mal recuperou os sentidos, o inseto pôs-se a pensar, o que de modo algum condizia com sua condição de invertebrado e artrópode. Agora duas naturezas lhe impeliam. Por um lado os instintos por outro, um turbilhão de pensamentos, de imagens e impressões que não pareciam lhe pertencer. De imediato, os instintos básicos falaram mais alto, impelindo-o ao vôo, em busca de alimento e procriação. Ao mesmo tempo o ambiente majestoso do mosteiro o atraia enormemente. Desnorteado o inseto vagou entre colunas esguias e abóbadas até encontrar o caminho para o jardim interno do mosteiro. O ar fresco e o sol da primavera fizeram-no esquecer por um instante o estado torturante em que se encontrava sua pequena mente. O perfume de um arbusto florido atraiu-o, depois foram restos adocicados de um pão, uma gotícula d’água para matar a sede, em seguida o âmbar fluindo de um plátano, até que o hábito marrom de um monge sentado à sombra atraiu-o por mimetismo. Pousando suavemente sobre o ombro do jovem monge que não se lhe deu por conta, pôs-se a ler a página amarelada de um livro que o religioso abrira sobre as pernas. Como contava com mais de um par de olhos e muita curiosidade o inseto leu de pronto a página do livro surpreendendo-se com a revelação da existência de um Espírito eterno, perfeito, onipresente, onisciente e principalmente de infinita bondade e compaixão, criador e juiz de tudo o que havia a sua volta e tantas outras coisas que não vira ainda em sua jovem existência de inseto. Por certo havia sido aquele Espírito Absoluto que o criara e que o fizera pensante. Entretanto, a razão de ser da maioria das coisas a sua volta lhe escapava. Aqueles homens silenciosos que vagavam pelo mosteiro, o que mais faziam além de curvar-se sobre os livros e morrer na companhia de insetos? E para além das paredes colossais do edifício, haveria outras criaturas, outros jardins? Com certeza. Mas como seriam? E acima das nuvens, além da Terra? Como a luz solar poderia ser tão perfeita, nem sutil demais, nem abrasadora em excesso? E o que dizer dos alimentos que se encontrava em profusão?
E assim ficou a conjeturar o inseto, até que novamente os instintos dele se apossaram arrastando-o até uma fêmea. Enquanto copulava ficou a imaginar o sentido daquele arrebatamento. Parecia que seus apetites também atendiam a uma lógica. Mas qual seria esta lógica?
Quando se desvencilhou da fêmea sentiu os primeiros pingos de chuva cair sobre o jardim. Logo a chuva caiu copiosamente e a brisa primaveril transformou-se em ventania a varrer tudo pela frente. O inseto também foi arremessado por entre arbustos, ao sabor do vento e por pouco não se afogou numa poça d’água, salvado-se pela queda de um ramo ao qual apegou-se instintivamente. A fêmea com a qual copulara, entretanto, não tivera a mesma sorte, jazia coberta de lama e despedaçada, poucos metros adiante. O incidente levou-o a fazer novas conjeturas sobre o Ser onipotente. Teria sido ele que o salvara da morte? E porque não salvara a fêmea se o livro do monge o descrevia como um ser de infinita bondade e compaixão?
Aturdido o inseto tratou de voar para lugar seguro e seco. Num vôo errático alcançou uma janela aberta em arco por onde entrou. Naquele recinto enorme juntavam-se os monges para ler à luz de candelabros. Havia muitos livros e o inseto sentiu desejo incontrolável de lê-los, tarefa que logo percebeu impossível. Percebeu, também, que outros insetos de outras espécies abrigavam-se naquele salão, alguns a voar como insanos em volta das labaredas das velas, outros a comer a madeira das estantes e outros a comer as brochuras, pergaminhos e tecidos,outros ainda a fazer ninhos, ocupando-se, vejam só, unicamente de viver, excretar,reproduzir-se e morrer. Mas ele era afinal, diferente, ocupava a maior parte do tempo a pensar.
Vagou por sobre muitos livros abertos, encantou-se com a geometria euclidiana, com as Sumas, com os poemas e iluminuras. Num dado momento pousou sobre uma mesa onde liam dois monges bem velhos. Um deles atinha-se a um tópico interessante que dizia serem todas as criaturas vivas obras do Criador e que por isto deviam ser respeitadas e amadas. Mal lera a última linha quando um dos monges apontou na sua direção e observou: _Veja que inseto estranho, tem uma cabeça enorme. É repugnante, nunca vi nada igual! O outro monge espantou-se e disse: _Trate de matá-lo, pode ser venenoso. O monge mais velho levantou o livro que lia e num golpe tentou esmagar o inseto que apesar do susto ainda conseguiu voar. O golpe arrancou parte de uma das patas traseiras do inseto que, mesmo assim, voou num espiral ascendente.
A salvo sobre uma viga do teto, imerso na escuridão, o inseto refletiu sobre o paradoxo que experimentara há pouco. Por que os monges atentaram contra a sua vida, tão insignificante e inofensiva, mesmo após terem lido as abençoadas palavras do Criador sobre o respeito às criaturas? Teria o Criador abandonado sua obra, entregando-a ao acaso? Existiria, afinal, o tal Criador? Que afirmação tola. Com certeza, havendo uma natureza tão repleta de diversidade certamente haveria uma causa inteligente e esta causa seria o Criador. Mas, afinal, qual seria o propósito da existência? E da morte? Qual seria a função de um monge e de um inseto no concerto das coisas?
Perdido em suas divagações o inseto mal percebeu a aproximação de uma aranha que matreiramente avançava a saltos curtos em sua direção. Graças a sua percepção de inseto pode safar-se das quelíceras da aranha faminta, lançando-se num salto sobre o imenso espaço aberto da biblioteca. Novamente os instintos o haviam salvado das distrações provocadas pela sua inquietante capacidade de especular sobre os porquês.
Enquanto zunia acima dos monges sofreu o ataque impiedoso dos morcegos que chegaram a deslocar uma de suas asas, impossibilitando-o, daí por diante, de voar. Agora se agarrava à lombada de um velho livro cuja cor lhe garantia a quase invisibilidade. Sentia-se fraco e dolorido. Além disto, seus instintos mandavam que se alimentasse urgentemente. Talvez algum monge deixasse alguma migalha ou uma flor sobre a mesa de leitura. Se conseguisse arrastar-se até lá, escapando dos morcegos, teria chance de sobreviver.
Mesmo faminto, sua mente inquieta não parava de perscrutar o mundo e o transcendente. Afinal, pensava como o Criador sendo perfeito engendrara uma criação imperfeita, cheia de contradições? Seria, então, o Criador imperfeito? E, sendo assim, qual o sentido das imperfeições da matéria? Sua própria situação parecia-lhe um paradoxo. Um inseto pensante, mas preso aos caprichos dos instintos? Um ser inofensivo, alvo da fúria e ignorância dos homens e dos instintos dos outros seres.
A lua cheia subiu no firmamento até atingir, em cheio, uma das janelas da biblioteca e encontrou o inseto já quase sem forças, ferido e à mercê dos predadores. Àquela altura da noite os instintos do inseto avisavam-no que seu relógio biológico marcava para breve o momento de sua morte. O inseto perguntava a si mesmo o porquê de uma existência tão breve e aparentemente sem sentido. Nem mesmo suas dúvidas mais elementares haviam sido respondidas. As respostas estariam em algum dos milhares de livros da biblioteca? Estariam na mente dos monges? Provavelmente não.
De repente, deu-se por conta que havia cometido um erro capital, desperdiçara a vida de inseto com especulações acima de sua capacidade, deixara, portanto de fruir do tempo que lhe havia sido dado, já não importando se pelo puro acaso ou pelo Criador. Neste instante o inseto perdeu as últimas forças e desprendeu-se da lombada do livro, despencando no vazio noturno.
No dia seguinte o monge encarregado da limpeza da biblioteca e também entomólogo amador encontrou o exoesqueleto do inseto sobre o piso e surpreendeu-se com suas peculiaridades anatômicas. O inseto tinha uma enorme cabeça sobre a qual havia uma espécie de carapaça, lembrando um capuz. Seu corpo era de um marrom idêntico ao dos hábitos usados por aquela ordem religiosa. Buscou numa prateleira um grande compêndio sobre insetos e verificou que nada constava sobre aquele estranho animal o que o deixou extremamente entusiasmado com a possibilidade de ter descoberto uma nova espécie, o que se confirmou alguns meses depois. A descoberta foi tão inusitada que a ordem religiosa a registrou em seus anais e ainda agregou ao símbolo do monastério a figura do inseto-monge, que assim passou a existir para sempre.

0 comentários :