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17 de ago. de 2013

Orfanato

Há alguns dias fui contratado para esse serviço, era uma oportunidade de emprego irrecusável. Eu morava em uma pequena cidade litorânea, sozinho, sem família, esposa ou filhos. Minha fonte de renda nos últimos três anos havia sido de bicos como segurança, era a única coisa que eu possuía relativa experiência. Eu, antes de perder minha esposa para o câncer, trabalhava como policial na capital do estado. Larguei tudo para batalhar ao lado de Priscila contra a maldita doença e, mesmo assim, ela se foi.
Nos últimos meses eu estava com pouquíssimas oportunidades de trabalho, o movimento era tão baixo que mal conseguia comprar a comida da semana. Conforme o mês ia acabando eu me desesperava mais. Foi em meio a esse desespero que me surgiu a oportunidade. Trabalhar como segurança no orfanato municipal que está desativado. Não havia a mínima chance de recusa, o salário era extraordinário, a única condição era morar no serviço durante a semana.
O orfanato desativado era um marco na pequena cidade, um casarão imenso de estilo colonial situado no alto do morro ao lado da praia. Todos na cidade conheciam o local, era quase um cartão postal. Suas paredes brancas refletiam, durante a noite, as luzes emanadas dos faróis. Era uma obra de arte em forma de prédio. A história que sai da boa dos antigos é que o orfanato havia sido desativado na década de 40 devido a um surto de tuberculose que atingiu as crianças. Desde então o prédio está vazio e foi posto a venda alguns anos atrás.
Sem titubear eu topei o serviço, seria a oportunidade perfeita. Além de um bom salário fixo e a oportunidade de alugar um apartamento menor eu iria ocupar minha cabeça no serviço e esquecer um pouco de Priscila, ela já se foi há 3 anos. Seria como um tratamento gratuito contra a depressão e ócio, mal pude esperar. Arrumei minhas malas e preparei tudo, teria que começar de imediato, pois o antigo vigia havia abandonado o serviço, assim o fiz.
Um zelador me mostrou o prédio e os aposentos, a velha casa estava caindo aos pedaços. As paredes todas rabiscadas, tabuas soltas no chão, faltavam telhas, e ainda assim era uma casa linda. As salas eram imensas e meus aposentos eram dignos de um filme de alto orçamento. Eu iria desfrutar minha vida de rei como um segurança do orfanato.
Minha primeira semana de trabalho foi extremamente calma, a única coisa que me atrapalhava era a luz do farol clareando meus aposentos constantemente, amarrei uma toalha preta em minha janela e resolvi o problema. Passeia a semana lendo alguns livros antigos, vendo fotos de minha época feliz e, principalmente, rodando o casarão de cima a baixo. Arrependi-me de ter trazido pouco material para distrair a cabeça, mas a semana foi melhor do que eu esperava.
Confesso que era medonho passar as noites vagando por aquele casarão. Fazia muito frio no alto do morro e as casas antigas sempre parecem ter um tom misterioso. Nunca fui de cair em crenças bobas, não acreditava em assombrações e espíritos. Sempre que, durante a noite, eu ouvia barulhos e ruídos, procurava e encontrava uma explicação lógica. O piso de madeira estralava devido a umidade, as grandes janelas que miravam para o mar criavam correntes de ar, as luzes do farol criavam sombras nos cômodos da casa. Tudo tinha uma explicação.
Foi assim que passei a primeira semana. Dormi pausadamente durante o dia e rondava a casa durante a noite. Esqueci-me de tudo que rondava minha vida fora do orfanato. Na caída do sol de sexta-feira chegou o outro vigia para tomar o posto, era César.
-E ai, novato, passou bem?
-Prazer, meu nome é Pablo. Foi uma semana interessante, nada demais.
-Prazer, César. Não enlouqueceu? A casa fala durante a noite, sabia?
-A natureza fala, César, a casa é só uma casa. – Falei enquanto colocava a mochila nas costas para ir. Saí andando.
-Assim você tenta se convencer.
Essa frase de César foi tema do meu final de semana. Enquanto eu arrumava as coisas para me mudar para um apartamento menor, continuava pensando no que aquele vigia me disse. Poderia ser só besteira, mas eu estava com uma sensação de impotência com relação ao casarão. Para me precaver do tédio resolvi levar mais livros e vários maços de cigarro, ia ter que ocupar minha cabeça. Mente vazia é oficina do orfanato.
Na segunda-feira deixei minha casa com todas as caixas arrumadas, meus vizinhos ficaram com a chave para entregar ao pessoal da mudança. Tomei o rumo para o orfanato, pelo menos lá dentro eu pensava menos em Priscila. Enquanto eu subia os muitos metros de morro ia observando o esplendor do casarão no começo da manhã. Ainda tudo meio escuro e a construção com três grandes janelas ostentava seu poder. Em uma delas pude ver uma silhueta, com certeza César me aguardava.
Cheguei à casa e coloquei minhas coisas no quarto, mas nada de Cesar. Procurei em toda a extensão do casarão, nada. Apesar de incomodado, concluí que ele havia descido quando me avistou chegando, fui ler e me ocupar. As horas passavam lentamente e eu já estava na metade de todos os livros que levei, e só começou a cair a primeira noite. Foi quando tudo piorou.
O farol estava apagado e os barulhos na casa eram cada vez mais nítidos. Ouvia-se o som dos grilos e morcegos ao redor, era uma sinfonia assustadora. Em minha volta em sentia algumas sombras passeando, eram grandes as sombras e não havia luz. Os barulhos no assoalho se assemelhavam a passos, eram cada vez mais pesados. Eu continuava andando durante as longas horas da noite e meu pensamento racional ia dando lugar às paranóias dos populares. Foi então que o avistei, jogado ao chão um velho caderno de capa vermelha onde pude ler o nome César.
Era um velho diário empoeirado, dentro dele havia anotações de inúmeros pensamentos do meu colega de serviço. Sentei-me á beira de um degrau da escada e, iluminando com a lanterna, passei a ler aleatoriamente seu conteúdo. Poesias, desabafos, histórias de família, havia de tudo lá. Quando cheguei às ultimas paginas fui tomado por um arrepio, César estava escrevendo sobre uma noite do serviço, completamente assustado.
“Ela está vindo, e vai me pegar. Os barulhos são mais fortes a cada minuto, a menina dos olhos de mel quer minha alma. Não posso mais correr, só posso rezar por ajuda, ou por uma luz. Esse lugar deveria ser fechado... 15/11/1972”
A data era de exatos 40 anos atrás, aquilo me colocou em desespero. César, o vigia que conheci mal tinha trinta anos de idade, como seria possível? Quando me apoiei para levantar vi ao meu lado, nitidamente, Priscila. Ela estava com uma aparência ótima, mas não sorria. Quando pensei em falar ela me interrompeu:
-Corra, Pablo. Ela quer sua alma.
-Como assim, quem quer? Priscila, como é possível que... – Antes de finalizar a frase eu avistei por cima do ombro do meu amor uma menina de olhos amarelos, cabelos pretos, roupão branco. Ela flutuava em minha direção, corri como nunca.
Eu sequer olhava para trás, consegui escapar pelo fundo da casa e corria em direção à estrada. Eu estava tão perto, faltava tão pouco, só pude sentir uma mão fria me empurrar de lado. Enquanto caí o penhasco em direção ao mar, pude ver a menina dos olhos de caramelo assistir tudo lá de cima. Junto ao meu corpo, incrustados nas rochas, estavam os ossos de uma criança.
Sentei-me na soleira da porta, ou melhor, o que restou de mim sentou. Eu estava perplexo, não entendia, sabia que meu corpo estava nas pedras, mas eu estava ali. Ao meu lado se sentou César, ele sorria e olhava para mim.
-Eu avisei, novato.
-O que é isso?
-Ela estava com fome, quis sua alma e pegou para ela, assim como a minha quarenta anos atrás. A menina que você viu foi a primeira a contrair tuberculose aqui, foi jogada do penhasco pelos funcionários que tinham medo da doença. Agora você pertence ao orfanato, nunca mais sairá daqui. Aproveite para se divertir com o próximo vigia.
Eu passo meus dias aqui agora, observando de fora. Essa semana chegou Carlos para trabalhar. César se apresentou como zelador, eu irei cumprimentá-lo hoje no fim da tarde. Estamos apostando para saber quanto tempo ele dura, Priscila acha que ele não passa da semana que vem.

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